Relatos
Selvagens (Relatos Salvajes,
Argentina, 2014) é o segundo filme do diretor Damián Szifron. Estreou no Brasil
em 23 de outubro passado e desde então foi assistido no país por mais de 300
mil espectadores, tornando-se assunto obrigatório em rodas cinéfilas. Concorreu
a Palma de Ouro em Cannes e é candidato ao Oscar na categoria
de melhor filme estrangeiro. O
filme é uma colagem de cenas urbanas que poderiam se passar em qualquer grande
cidade de uma terra em transe. Os seis "relatos selvagens" não possuem
uma linearidade narrativa, mas coincidem na estrutura temática: situações
corriqueiras que saem do controle e terminam de forma catastrófica. Alguns espectadores
incautos chegam a abandonar a sala de cinema após cenas mais indigestas. Mas
não estamos falando aqui da violência estetizada que virou a marca dos filmes
de Quentin Tarantino. Ao explicitar a violência, Szifron parece antes querer
nos lembrar de que viver é perigoso. Relatos Selvagens fala diretamente ao
espectador, que se enxerga na tela. Quem nunca perdeu o controle, ou pelo menos
foi tomado por instintos violentos, ainda que depois se arrependesse, após
sofrer humilhação, abuso ou trapaça? Afinal vivemos em um mundo onde o espaço
da liberdade vem sendo cada vez mais reduzido por atendentes de telemarketing
insensíveis, guardas de trânsito autoritários, burocratas displicentes e
patrulhas de toda ordem. A explosão de violência em Relatos Selvagens provoca
uma sucessão de efeitos no espectador: diverte, incomoda e leva à reflexão. O
filme remete a Dia de Fúria (Falling Down,
1993), em que o personagem vivido por Michael Douglas, frustrado com um
divórcio litigioso e com sua demissão, promove violenta vingança contra o mundo.
Estrelado pelo notável Ricardo Darín, o filme argentino vai além, e ressalta o
momento de egotismo, individualismo e narcisismo por que passa o mundo
atualmente. Em plena crise dos valores éticos da modernidade, princípios como
solidariedade e sociabilidade estão fora de moda e triunfa a lógica da
competição e da violência. Some-se a isso a complexidade crescente da vida pós-pós-moderna
e os acontecimentos mais prosaicos do cotidiano, como um casamento, uma multa
de trânsito ou uma ultrapassagem de carro na estrada, podem resultar em
barbárie. Relatos Selvagens é mais um exemplo da competência do cinema
argentino, que vem se destacando pelo lançamento não de "produtos",
mas de "obras". A comparação com a produção brasileira atual chega a
ser incômoda. É certo que cinema é indústria e não está livre de sua lógica. O
cinema precisa ser assistido, buscar o público e se popularizar. Mas o caminho
para isso não passa simplesmente por aplicar a linguagem da televisão à tela
grande. Não se trata de defender uma oposição completa entre
televisão e cinema – Szifron é um exemplo da interdependência dos dois sistemas, tendo iniciado sua carreira na televisão argentina. Com poucas
e valorosas exceções, sendo a recente safra pernambucana a exceção que confirma
a regra, quem acompanha o cinema brasileiro deve estar sentindo falta de um
ingrediente que tem sobrado no cinema argentino: a originalidade.
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