quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Os deuses de Homero

Os deuses são muito mais do que uma fantasia homérica. Durante milênios, os gregos adoraram as divindades mencionadas nas epopeias e muito mais. Não há como ter alguma certeza do que fato tinham em mente ao fazê-lo. Mas, se tomarmos a Odisseia como guia, era algo assim: deuses são inquisitivos, intrometidos, orgulhosos de seus humanos favoritos e perigosamente suscetíveis de enraivecer. Para conservar seu favor, os mortais precisam oferecer sacrifícios, certificar-se de preencher as narinas celestes com o aroma da carne assada. O ritual de verter vinho, associado à oração, também funciona para aplacar os deuses. O herói luta para conquistar a única imortalidade acessível a humanos: a fama épica (kleos). Para tanto, precisava vencer obstáculos com ajuda divina ou ser espetacularmente derrotado, ao desprezá-la. Pode-se ver Odisseu envolvido numa questão religiosa, testando a eficácia de sua atitude em relação ao divino e determinando para si mesmo se os deuses vão lhe dar ouvidos e ajudá-lo.

O divino está em toda parte em Homero; sua poesia é profundamente teológica. Uma razão para a epopeia se deter tanto m banquetes e bebidas, por exemplo, é porque esses eventos são cruciais: na Grécia arcaica, cada refeição era também um ato religioso. Cada amanhecer é, com efeito, ora de uma deusa, Aurora. Lua e sol, rios, cavernas e árvores são deuses ou abrigam um habitante divino. Num nível emocional mais profundo, ouvimos ao longo de toda a Odisseia que os humanos descendem efetivamente de Zeus, de Ares ou de Posêidon. Odisseu, o heroi desse poema, tem uma ancestralidade interessante - seu avô materno, Autólico (cujo nome significa o "próprio lobo"), é um trickster e ladrão que, em algumas versões do mito, era filho de Hermes, deus conivente. A versão homérica abranda esse passado sombrio, defendendo em vez dela a história de que Hermes ensinou a Autólico a arte do roubo.

Isso levanta a questão da moralidade dos deuses homéricos. Não muito depois de as epopeias ganharem forma, os filósofos já começavam a criticar suas divindades. Disse um moralista do século VI, Xenófanes: "Homero atribui aos deuses tudo o que é mais vergonhoso entre mortais. Eles roubam, cometem adultério e enganam uns aos outros." No começo do século IV aC, Platão chegou ao ponto de banir a poesia de Homero da cidade idealozada, moralmente íntegra, que esboça em sua obra A república. A seu ver, a boa ordem do Estado era ameaçada não só quando os seus líderes liam a respeito e imitavam os personagens que Homero apresentava como incapazes de controlar suas emoções. Era um risco também que seus habitantes acreditassem em divindades menos que perfeitas.

Os deuses de Homero podem constituir paradigmas éticos pobres, mas mesmo assim encarnam verdades reais. São de fato poderes maiores que nós, em ação no mundo. Esses poderes parecem caprichosos e às vezes cruéis. Emoções assoladoras - desejo ardente, embriaguez, a ira da guerra -, de onde mais elas poderiam vir se não dos deuses? Chamar essas experiências respectivamente de Afrodite, Dionísio e Ares era dar-lhes nome, mas ao mesmo tempo controlá-las. Pois os deuses, uma vez humanizados , funcionam como uma família estendida e um tanto disfuncional, na qual existe ao menos alguma organização. Governando do alto está Zeus, que impõe suas ordens com raios brancos e ardentes. Hades e Posêidon, seus irmãos, têm seus lugares no mar e debaixo da terra. Outros deuses e deusas alinham-se como filhos ou filhas de Zeus. Há uma bela economia em tal sistema politeísta - um deus equilibra o outro, de um modo quase comicamente doméstico. Se a mão (Hera) diz não, você pode pedir para o pai (Zeus). Humanos conseguem o que pedem rezando a quantos deuses desejarem. 

Richard P. Martin, Apresentação de Odisseia.

domingo, 7 de dezembro de 2014

Dor e coriza


Ontem mataram um homem aqui embaixo
O corpo ficou estendido o dia inteiro sob a sacada
Ascendemos uma vela por sua alma
A polícia matou mais um homem negro no Brasil
Transeuntes diziam: antes ele do que eu
Eu gripei, e peguei um torcicolo daqueles
Anteontem, muitas grandes árvores caíram
Grossos troncos e milhares de galhos caídos,
depois de uma dessas tempestades violentas,
que derrubam árvores e gente
Acabam de uma hora para a outra, como se nada houvera
A cidade retoma aparente normalidade
A violência escorre pelos ralos, mantém-se submersa
Restam troncos, galhos e corpos, dor e coriza

Suspeito de assaltar loja morre após troca de tiros na 410 da Asa Sul (Foto: Reprodução/TV Globo)
Suspeito de assaltar loja morto após troca de tiros 

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Democracia: origem histórica


A democracia é um sistema de governo cujas origens remontam a Grécia Antiga, mais especificamente à cidade de Atenas, a cidade-estado mais próspera da Grécia Ocidental. No curso do século IV a.C., Atenas era governada por tiranias, ou seja, sistemas políticos baseados no uso da violência como forma de ascensão ao poder. Antes da tirania, Atenas havia vivido o sistema monárquico e o sistema dos legisladores Drácon e Sólon. Em560 a.C., houve a ascensão do líder popular de nome Pisístrato, que, apesar de não ser um líder levado ao poder de forma democrática, possuía uma grande aceitação popular. Todavia, com seu falecimento, seus filhos, Hípias e Hiparco, não tiveram o mesmo sucesso em sucedê-lo, culminando com o assassinato de Hiparco em527 a.C. por Armódio e Aristógiton, aclamados como os tiranicidas, heróis da democracia.
Hípias, ao testemunhar o que sucedeu com seu irmão, refugiou-se em um protetorado persa, tentando fugir desse mesmo destino, o que abriu a possibilidade de uma disputa pelo poder por parte dos dois grandes partidos atenienses: o partido dos aristocratas, representado por Iságoras, e o dos populares (ou melhor, uma aristocracia progressista), representado por Clístenes. Iságoras conseguiu desterrar Clístenes, mas tal atitude desencadeou uma revolta popular sem precedentes, que culminou com a volta de Clístenes e a elaboração de uma nova constituição, com vistas a instituir um regime onde o governo se desse diretamente pelo povo: a democracia (demo = povo; kratos = poder político).
Clístenes (Atenas, 565 a.C. - Atenas, 492 a.C.)
Com a nova constituição surgiu a nova divisão política de Atenas: esta foi dividida em três grandes regiões: litoral, cidade e interior. Após isso, houve a divisão em 10 demos (como se fossem bairros) e 10 tribos, formadas de 3 demos, uma de cada região. Estabeleceu ainda as condições para ser cidadão: ser grego, do sexo masculino, livre, maior de 18 anos e estar quite com o serviço militar. Desse modo, mulheres, menores, estrangeiros (métoikion = met/fora + oiko/casa) e escravos (andrapoda = andro/homem + poda/pés-locomoção) não participavam do processo político-democrártico ateniense. A partir dali, a fidelidade do cidadão era à polis, não mais à família e seu nome seria o do demo em que ele estava alocado e não mais o nome de sua gens, pondo fim à referência do cidadão ao genos ou mesmo à frátria. O novo sistema visava a participação de todos os cidadãos nos assuntos públicos, determinando que a representação popular se fizesse por sorteio, e não através de eleição, o que foi severamente criticado por Sócrates e Platão, na medida em que entendiam que, uma tal forma de ascenção às funções públicas deturpava o sentido do governo, que não estaria comprometido com a qualidade das ações públicas uma vez que não zelava por determinar alguém efetivamente capacitado para realiza-las, mas qualquer um, através de um simples sorteio.
O apogeu da democracia ateniense se deu com Péricles, no século V a. C.. quando se formou a Liga de Delos (478 a.C. -404 a.C.), uma liga federada das pólis gregas, lideradas por Atenas, instituída para defender as cidades dos ataques persas, instituindo a hegemonia ateniense, estabelecida sobre uma política democrática e imperialista, que impunha às cidades aliadas o pagamento de uma contribuição que, posteriormente, converteu-se em imposto, cuja arrecadação era revertida, precipuamente, para o embelezamento de Atenas e a manutenção de sua supremacia em face das demais cidades-estado gregas.
Busto de Péricles com a inscrição "Péricles, filho de Xantipo, Ateniense". Cópia romana em mármore de um original grego, c. 430 a.C. (Museus Vaticanos,Roma).

Por Ludmila Franca (Instituto Norberto Bobbio)

sábado, 15 de novembro de 2014

Anotações para uma Oréstia Africana

Outro doc de PPP. Grande descoberta: seus docs são tão geniais quanto os filmes de ficção.
Este Appunti per una Orestiade africana, de 1970.
PPP manda seu público ler, fazer o dever de casa. Sair da cômoda posição de espectador.
 
Sinopse: Em uma época em que os povos africanos estavam se libertando dos colonizadores europeus, o diretor Pier Paolo Pasolini teve a ideia de fazer uma adaptação de Oréstia, tragédia grega escrita por Ésquilo, na África. O projeto acabou fracassando, o que levou Pasolini a juntar o material gravado e fazer um documentário sobre o processo do filme, com as pesquisas de locações e elenco. Um relato que traz a pergunta: até que ponto a África conseguiu se libertar? 

Anotações Para Uma Oréstia Africana : Poster

Oresteia de 458, cerca de dois anos antes da sua morte, chega intacta aos nossos dias. Manuel Oliveira Pulquério, da Universidade de Coimbra, sublinha que, das tragédias esquilianas que sobreviveram até à actualidade, é destacada a importância da Orésteia, pela mudança de paradigma social, ético e religioso, bem como de modelo de Estado que lhe está subjacente.

Os poetas trágicos – categoria em que Ésquilo se encontra incluído – concorriam na Antiguidade aos concursos dramáticos, organizados no âmbito das festividades dionisíacas, com conjuntos de quatro peças ou tetralogias, as quais correspondiam a uma trilogia trágica e a um drama satírico, sem que estas estivessem necessariamente ligadas entre si.
Busto de Ésquilo
A Ésquilo deve-se a criação da figura da “grande trilogia temática de que a Oresteia é o maior e o mas perfeito exemplar que nos chega às mãos no século XXI” (Pulquério). Durante a acção dramática homens e deuses (Zeus, Apolo e Atena) são mobilizados para encontrar uma solução que quebre a cadeia de culpa e expiação que liga fatalmente as personagens. Uma culpa que é simultaneamente pessoal e hereditária:
«Mas Apolo e Orestes, o deus e o homem, hão-de superar este conflito de deveres, quando os deuses antigos (as Erínias, Fúrias ou Euménides) cederem à realidade dos novos tempos , representada pelos novos deuses olímpicos, que com a vitória sobre os outros deuses e sobre si próprios irão inaugurar uma nova era de paz, tanto para os mortais como para os imortais. Estes deixarão (…) por força de um direito de instituição divina (Atena é fundadora do Areópago) de ser árbitros da vida e da morte vinculados a um destino, a que não têm hipótese de libertação...» (MOP, 2010)


A Oresteia (em grego: Ὀρέστεια, transl. Orésteia), também conhecida como Oréstia, Orestíada ou A Trilogia de Orestes, é uma trilogia de peças teatrais de autoria do dramaturgo grego Ésquilo. É composta pelas tragédias Agamemnon, Coéforas e Euménides. Trata da maldição da tragédia sobre a família de Atreu após o retorno da guerra de Troia. 1
É a única trilogia que sobreviveu até aos nossos dias. Foi representada pela primeira vez em 485 a.C. nas Festas dionisíacas de Atenas, em que ganhou o primeiro prémio.

Agamemnon


Clitemnestra hesita antes de matar Agamenon dormido. Ao seu lado, Egisto a incita para que o execute. Óleo de 1817, obra de Pierre-Narcisse Guérin.

Continua a sequência de morte e vingança lançada sobre os descendentes de Atreu, após a vitória dos gregos, na guerra de Troia. A peça narra a volta bem sucedida de Agamemnon, e do seu trágico assassinato, planejado friamente por sua esposa Clitemnestra, que vingou a morte de sua filha favorita Ifigênia (entregue por Agamemnon, seu pai em sacrifício aos deuses) e seu amante Egisto, primo de Agamemnon, banido do reino pelo assassinato de Atreu. A peça narra também a última previsão de Cassandra, o "chorar do pássaro" que inúltilmente prevê o crime que levaria à sua própria morte, junto de Agamemnon.

Coéforas2

Trata da vingança de Orestes, filho de Agamemnon e Clitemnestra, que vinga a morte de seu pai assassinando sua mãe e também seu amante Egisto. Orestes recebe o apoio de sua irmã Electra e de do deus Apolo.

Euménides

A peça final, é o julgamento de Orestes, que dá fim a sucessão de vingança familiar e da maldição lançada sobre os filhos de Atreu. Se passa em Atenas. O julgamento termina em um empate o que favore a inocência de Orestes.

Resenha no blog Cinema Italiano

O olhar antropológico de Pasolini sobre a África moderna 
Lapo Gresleri

A observação do “outro” – entendido como estranho, diverso e até mesmo oposto a si – é elemento central na obra pasoliniana: para o autor, os camponeses de Friuli, o subproletariado e a burguesia italiana são, assim como as populações terceiro-mundistas, objeto de análise e de confronto ideal para refletir sobre a sociedade de sua época.
Pasolini não vê salvação alguma para a Itália e, em geral, para a Europa, consta- tando a já incontível afirmação da sociedade de massas, causa primeira da margi- nalização e em seguida da anulação da tradicional cultura camponesa e das classes sociais ligadas a ela, em favor de uma ideologia pequeno-burguesa homologante e consumista. Já o discurso a respeito do Terceiro Mundo é bem diferente.
Nestes países e em seus povos, o autor ainda vê uma possível evolução que não esqueça os respectivos patrimônios intelectuais, um progresso em cujo processo, ligado a novos contextos específicos consequentes às várias guerras de libertação, permanece evidente o controle econômico e político, portanto cultural, das potên- cias ex-colonizadoras.
A assimilação por parte das populações e das realidades locais de elementos estranhos a elas, pertencentes ao mundo ocidental com o qual entram em contato, dá lugar a um dos fatores mais característicos do Terceiro Mundo, que Pasolini evidencia, anota, filma em suas viagens, ou seja, a existência (...) de contrastes enormes, entre manifestações de vida autóctone quase pré- -históricas e (...) exibições de uma modernidade (...) 1
Que lhe é externa. Esta estridente coexistência torna-se, então, um signo tangível daquele mundo arcaico – ou “irracional” – que sobreviveu à “democracia formal” ocidental que, importada com instrumento de domínio, se revelou, ao contrário, um meio de emancipação.2
Nesta ótica, assume particular relevância o contexto africano dos últimos anos de 1960, quando Pasolini tem a ideia de fazer uma transposição cinematográfica da Oréstia esquiliana ambientada no continente que, desco- lonizado há pouco,3 passou, portanto, “(...) de um estado “selvagem” para um outro “civil e democrático”, deixando para trás séculos de “tribalismo” e “pré-história”.4
O diretor considera que o eixo do texto grego é esta mesma evolução (...) de uma sociedade primitiva, dominada por sentimentos primordiais, obscuros e irracionais, simbolizados pelas Erínias, a uma nova comu- nidade estatal democrática, guiada pela Razão (Atena) e baseada em modernas instituições humanas e eletivas: o tribunal, a assembleia, o sufrágio.5
Mas segundo o autor, a civilização arcaica – superficialmente chamada de folclore – (...) deve ser assumida no interior da civilização nova, integrando-a e tornando-a específica, concreta, histórica. As terríveis e fantásticas divindades da Pré-história africana devem sofrer o mesmo processo das Erínias, transformando-se em Eumênides.6
Anotações para uma Oréstia africana se propõe, portanto, a indagar a África contemporânea em busca daqueles traços arcaicos ainda presentes nos lugares, nos corpos, nos usos e costumes locais, capazes de permitir uma atualização da tragédia de Ésquilo. Ou seja, Pasolini quer destacar “(...) os aspectos híbridos das sociedades africanas, situadas entre o arcaísmo local e a contaminação consumista ocidental (...)”7; de uma nova “nação socialista de tendências (...) filochinesas, mas cuja escolha evidentemen- te ainda não é definitiva, pois ao lado do atrativo chinês existe um outro atrativo não menos fascinante: o americano ou, melhor dizendo, neocapitalista”. Isso é demons- trado pelas imagens de alguns volumes sobre a China de Mao vendidos na rua, sobre um lençol, ao lado de uma loja de eletrodomésticos, e da Universidade de Dar es La- laam com o inconfundível perfil arquitetônico “elegante e seguro” de um college estadunidense, símbolo de “todas aquelas contradições internas da jovem nação africana”, explicitadas na livraria do Instituto: uma placa na entrada informa, de fato, que a construção se deve à República Popular da China, mas na vitrine estão expostos textos do tipo: “Como ensinar inglês”, “Manuais para professo- res de história na África ocidental”, “A educação social do adolescente”, “Os novos africanos”, “Homens da cidade e homens da tribo”, contos para jovens e novas gramáticas, livros sobre Cristo e sobre a educação americana.
Servem de contraponto a elas, as imagens dos afri- canos repetindo “(...) árduas e milenares atividades coti- dianas no interior de suas aldeias (...)”.8 É nestas últimas que o poeta-diretor se detém mais tempo, oferecendo um retrato participante, mas distanciado, de uma realidade que se reorganiza rapidamente depois de um processo de auto-renovação que se apoiava justamente naqueles traços populares que ainda eram a base da cultura local. Em busca dos intérpretes ideais para a tragédia grega, Pasolini fotografa pescadores, camponeses e pastores de rostos duros e orgulhosos, suas moradias e seus instrumentos de trabalho, que só fazem confirmar aquele sen- tido de pobreza digna que caracteriza a vida e os hábitos das populações, como as cabanas de madeira, pedra, terra e palha às margens do lago Vittoria e os poucos objetos (uma xícara, uma panela, uma tigela, alguns ferramentas) pertencentes a quem nelas reside.9
A elas o diretor contrapõe mulheres e moças que “parecem não saber outra coisa senão rir e aceitar a vida como uma festa, com seus lenços de todas as cores, vermelhos, amarelos, azuis, roxos”, sinais de uma mentalidade talvez já mais próxima do modelo ocidental.10
Se modernos barcos de ferro substituíram as antigas jangadas para atravessar lagos e rios, observando os po- voados citadinos recentes nas redondeza de Kigoma e os novos estilos de vida nestes locais, fica ainda mais evidente a mistura de passado e presente que caracteriza o continente.11 As aldeias construídas há pouco segundo os modelos urbanísticos ocidentais – reproduções em escala menor das novas e mais caóticas metrópoles africanas – cheias de automóveis, letreiros publicitários, postos de gasolina, bares e comércios, trazem à memória as enso- laradas periferias de Accattone (1961), Mamma Roma (1962) ou A ricota (1963). A seu lado, vemos as imagens dos mercados “à moda antiga” onde os camponeses se re- únem caoticamente para trocar seus produtos, tais como sementes, frutas, verduras acondicionadas em grandes cestos, feixes de lenha, utensílios e objetos de artesanato em argila.
Até então, Pasolini se interessava mais pelos aspec- tos arcaicos que ainda caracterizam a África, deslocando agora a sua atenção para os traços mais modernos. A saída de uma fábrica, assim como a atividade numa escola recém-construída reiteram aquela ideia de emancipação coletiva mencionada antes: “moças ainda à moda antiga, camponesas, e outras mais modernas e sem preconceitos” que alternadamente, fogem e enfrentam com segurança o olhar quase indiscreto da câmera, e os estudantes que, “segundo a concepção pedagógica moderna”, alternam o trabalho no campo com o estudo “que ainda aparece para eles como uma dádiva, uma concessão”. Um respeito pelo passado e pela tradição que a repentina modernização recém-implantada não conseguiu arranhar, superar, en- trando antes em contato com eles numa recíproca contaminação que é sinal de uma consciência coletiva madura e compartilhada.
“O modo de não se deixar alienar pela moderna sociedade de consumo poderia ser fornecido também [ao africano] pelo fato de ser, justamente, africano, isto é, de poder opor ao modo de consciência ocidental uma sua alma original que faz com que as coisas que aprende não sejam noções consumistas, mas antes noções pessoais, reais”, que o ajudam a “aprofundar os conhecimentos an- tigos”. A conversação entre o diretor e alguns estudantes africanos – elite culta, portanto, que se formou com base nos modelos ocidentais, mas sem esquecer a história do próprio povo, através da qual, aliás, se relaciona com o novo contexto europeu – é útil para compreender uma passagem essencial, ou seja, a sugestão do cineasta de não fazer um filme falado, mas sim cantado em estilo jazz.
“Se cantores-atores negros americanos se dispõem – sustenta Pasolini – a filmar na África um filme sobe o re- nascimento africano, isto só pode se apresentar com um significado preciso. De fato, é claro que os vinte milhões de subproletários negros da América são os líderes de qualquer movimento revolucionário no Terceiro Mundo.” A luta pela autodeterminação e pela afirmação dos direitos dos negros, levada adiante nos Estados Unidos daquela época segundo as modalidades propostas pelos dois líderes Martin Luther King e Malcolm X, não se manifesta apenas no plano social, mas também, e sobretudo, nos planos intelectual e artístico, que se mostraram, desde sempre, muito ligados às raízes arcaicas do próprio povo. Cultivando e tramando crenças, usos, costumes e saberes, favoreceu-se a formação de uma cultura paralela à cultura dominante, justamente afro-americana,12 da qual o jazz é, talvez, a expressão mais evidente, emblema daquela “resistência”, oposição e rebelião em relação ao sistema branco. A partir dos anos 1950, do Bebop ao mais extremo Free Jazz, o gênero demonstra um desejo crescente de afastamento das melodias ligeiras e fáceis em direção a formas mais articuladas e complexas, incompreensíveis e desagradáveis a uma audição superficial, e na realidade profundamente intelectuais, caracterizadas pelo desejo de um retorno ideal às origens, às sonorida- des quase primitivas próprias da Terra Mãe África.13
A luz do que foi dito, a adaptação musical da cena de Cassandra e, de uma maneira mais geral, o comentário musical que acompanha todo o filme, torna-se uma enésima representação daquela mistura entre presente e passado incita no novo africano, assim como em sua civilização. Mas uma reelaboração, uma reconceitualização cultural desse alcance não pode deixar inalterado o saber de origem que, de fato, perde uma parte de si, ou melhor, liberta-se daqueles traços mais irracionais típicos de qualquer arcaísmo. Chega-se assim à terceira parte da pesquisa filmada, centrada nos ritos, símbolos, para Pasolini, da permanência dos traços antigos próprios “das Fúrias agora transformadas em Eumênides” e, portanto, não superados, mas coexistentes uns nos outros, como demonstra a dança ritual “com seus precisos significados religiosos, talvez, cosmogônicos”, agora repetida “quase como divertimento, esvaziando estes gestos de seu antigo significado sagrado”.
Assim também, as imagens de uma oração fúnebre e de uma cerimônia nupcial nas ruas de Dodoma: os penteados, o modo de caminhar, os acenos de dança, os gestos, as tatuagens nos rostos “são todos eles, sinais de um antigo mundo mágico” que se apresenta como um costume, “um antigo espírito autóctone que não quer se perder”. No pátio da casa dos noivos, onde se celebra uma festa sob muitos aspectos semelhantes às europeias, ao ritmo moderno de uma orquestra que toca instrumen- tos elétricos de clara proveniência ocidental, percebe-se “a permanência do antigo espírito, transformado (...) em vontade de felicidade, em festa, em graça, em leveza, em desenvoltura, (...) traços muito típicos do espírito africa- no”. O mesmo acontece durante a entrega dos presentes por parte dos convidados: um colchão, dois travesseiros, uma mesa, tão estranhos à tradição local, misturam-se a outros misteriosos objetos (talvez pratos de comida) en- voltos em grandes panos. Um ato que não é um confu- so e insensato acúmulo material, mas uma manifestação da alternativa ao “progresso sem desenvolvimento” que o autor identifica como limite primeiro das sociedades europeias contemporâneas, voltadas para o presente he- donista mais do que para uma salvaguarda consciente de m passado próprio, singular e coletivo, capaz de abrir uma perspectiva concreta de futuro.
“Há no povo africano uma grande liberdade e uma grande disponibilidade em relação ao futuro”, comenta o autor, “mas o caminho em direção ao futuro não tem solu- ção de continuidade (...). O futuro [de um povo] está em sua ânsia de futuro e sua ânsia é uma grande paciência”. Com estas palavras, termina o filme: uma conclusão sus- pensa, aberta como aberto era então o destino da África, recém-nascida nação independente que se defronta com uma realidade nova em rápida afirmação, mas com um pleno e consciencioso domínio de um passado individual e coletivo. As imagens no final, só fazem reiterar visual- mente este conceito: camponeses ocupados em repetir suas atividades seculares segundo as práticas dos pais, são o signo daquela paciência confiante que está na base da relação entre homem e ambiente circunstante, que se concretiza na espera dos frutos futuros do próprio tra- balho.
E para estes trabalhadores e para outras figuras retra- tadas nos Appunti que Pasolini volta o seu olhar etnográ- fico, desprovido, porém, daqueles limites característicos da antropologia moderna que coloca os objetos de estu- do sob a lente deformante de uma suposta inferioridade em relação a seus observadores europeus, filtrando assim – através de uma bagagem cultural estranha e comparti- lhada – hábitos locais que, consequentemente, só podiam resultar “primitivos”. A abordagem do diretor não é, por isso, de superioridade apriorística e de fechamento, mas de confiança disponível em seu interlocutor, certo de que este confronto pode se transformar em troca e aumentar, assim, os respectivos patrimônios cognitivos e experien- ciais, princípio esquecido com muita frequência – em particular no plano interracial – e que deveria, ao contrá- rio, ser a base de qualquer relação humana.


1. Marianna De Palma, Pasolini e il documentario di poesia, edizioni Falso Piano, Alessandria, 2004, pp. 46-47. Te- mos, por exemplo, o diário de viagem L’odore dell’India (1961), no roteiro de Il padre selvaggio (1962) ou em Sopra- luoghi in Palestina per il Vangelo secondo Matteo (1965), Appunti per un film sull’India (1968), Le mura di Sana’a (1971), Appunti per un’Orestiade africana (1975).
2. Eficaz neste sentido, a reflexão de Pasolini contida em Che fare col “buon sel- vaggio”?, “L’illustrazione italiana”, CIX, 3, fevereiro-março 1982, hoje em Walter Siti- Silvia De Laude (org.), Pier Paolo Pasolini. Saggi sulla politica e sulla società, I Meridiani, Arnoldo Mondadori Editore, Milão, 1999.
3. Sobre a gênese do projeto, Roberto Chiesi, “Pasolini e la ‘nuova forma’ di Appunti per un’Orestiade africana”. in Roberto Chiesi (org.), Appunti per un’Orestiade africana di Pier Paolo Pasolini, Edizioni Cineteca di Bologna, Bo- lonha, 2008, pp. 6-12. Ver também P. P. Pasolini, “L’Atena bianca” in Laura Betti – Michele Gulinucci (org.), Pier Paolo Pasolini. Le regole di un’illusione, Fondo Pier paolo pasolini, Roma, 1991, e Pier paolo Pasolini, Nota per l’ambientazione dell’Orestaide in Africa, “La città futura”, 13, 7 de junho de 1978, hoje em Walter Siti – Franco Zabagli (org.), Pier Paolo Pasolini. Per il cinema, I Meridiani, I, Arnoldo Mondadori Editore, Milão, 2001.
4. Giovanna Trento, Pasolini e l’Africa. L’Africa di pasolini, Mimesis Edizioni, Udine, 2010, p. 210.
5. Ivi, p. 201.
6. P. P. Pasolini, Nota per l’ambientazione dell’Orestiade in Africa, cit., p. 1200. 
7. Serafino Murri, Pier paolo Pasolini, l’Unità/Il Castoro, Milão, 1995, p. 116. 
8. Idem.
9. É interessante comparar as imagens do diretor com aqueles trazidas pelos ex- ploradores estudiosos que o precederam no continente. De interesse particular é, neste contexto, a pesquisa etno-arquitetônica de Lidio Cipriani apresentada em seu Abitazioni indigene dell’Africa Orientale Italiana, edizioni della Mostra d’Oltremare, Nápoles, 1940. Apesar da distâncias de quase trinta anos de história civil, os dois trabalhos confirmam a manutenção dos traços tradicionais na Áfri- ca moderna, sinal inequívoco daquela permanência arcaica que Pasolini queria encontrar para seu filme.
10. Já em Che fare com il “buon selvaggio”?, um Pasolini levemente misógino vê o consumidor ideal como “brincalhão, bobinho, risonho, afetado e crédulo como uma menina”.
11. Cujas intrínsecas razões culturais são expressas em Pier Paolo Pasolini, Nell’Africa nera resta um vuoto di millenni [Na África negra persiste um vazio de milênios], “Il giorno”, 20 de março de 1970, hoje in Walter Siti – Franco Za- bagli (org.), op. cit.
12. Para aprofundar, ver Maria Giulia Fabi, America nera: la cultu- ra afroamericana, Carrocci, Roma, 2002.
13. Uma síntese brilhante desta evolução está contida em Guido Michelone, “La modernità del jazz” in Jazz, Edizioni Pendragon, Bolonha, 1998, pp. 53-68.

Bibliografia
Cipriani L., Abitazioni indigene dell’Africa Orientale Italiana, Edizioni della Mostra d’Oltremare, Nápoles, 1940.
Costa A. (org.), Pier Paolo Pasolini. Appunti per un’Orestiade africana, Quaderno del Centro Culturale di Copparo, Capparo, 1983.
Chiesi R. (org.), Appunti per un’Orestiade africana di Pier Paolo Pasoli- ni, Edizioni Cineteca di Bologna, Bolonha, 2008.
De Palma M., Pasolini e il documentario di poesia, Edizioni Falso Piano, Alessandria, 2004.
Fabi M.G., America nera: la cultura afroamericana, Carrocci, Roma, 2002.
Fusillo M., L’ ‘Orestea’: l’utopia de una sintesi, in La Grecia secondo Pasolini, Carrocci, Roma, 2007, pp. 139-184.
Michelone G., La modernità del jazz in Michelone G., Jazz, Edizioni Pendragon, Bolonha 1998, pp. 53-68.
Murri, S., Pier Paolo Pasolini, l’Unità/Il Castoro, 1995.
Pasolini P. P., Che fare col “buon selvaggio”?, “L’illustrazione italiana”, CIX, 3, fevereiro-março de 1982, hoje in Siti W. – De Laude S. (org.), Pier Paolo Pasolini. Saggi sulla politica e sulla società, I Meridiani, Arnoldo Mondadori Editore, Milão, 1999.
Pasolini P. P., L’Atena bianca in Betti L. – Gulinucci (org.), Pier Paolo Pasolini. Le regole di un’illusione, Fondo Pier Paolo Pasolini, Roma, 1991.
Pasolini P. P., Nell’Africa nera resta um vuoto de millenni, “Il Giorno”, 20 de março de3 1970, hoje in W. Siti – F. Zabagli (org.), Pier Paolo pasolini. Per il cinema, I Meridiano, I, Arnoldo Mondadori Editore, Milão, 2001.
Pasolini P. P., Nota per l’ambientazione dell’Orestiade in Africa, “La cit- tà futura”, 13, 7 dfe junho de3 1978, hoje in Siti W. – Zabagli F (org.), Pier paolo pasolini. Per il cinema, I Meridiani, I, Arnoldo Mondadori editore, Milão, 2001.
Picconi G., La furia del passato. Appunti su Pasolini e l’“Orestiade” in Casi S. – Felice A. – Guccini G., Pasolini e il teatro, Marsilio, 2012, pp. 129-139.
Trento G., Pasolini e l’Africa. L’Africa di pasolini, Mimesis Edizioni, Udine, 2010.

As grandes rivais: Esparta e Atenas

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Comícios de Amor

A retrospectiva completa da produção cinematográfica do italiano Pier Paolo Pasolini, com 22 títulos entre curtas e longas. “Pasolini, ou quando o cinema se faz poesia e política de seu tempo”

Acabo de assistir a "Comícios de amor" (Comizi d'amore), de 1963.


"Assim conclui-se a nossa pesquisa. O grito das classes sociais mais baixas e dos instintos mais profundos. Trabalhadores de Milão, Florença, Nápoles e Palermo unidos em uma luta contra uma lei moderna e democrática. Forçados a assim admitir a realidade de certos desejos que preferem ignorar. Se falam, é de modo excessivamente simplista e confuso. Nós a realizamos na Itália do milagre econômico, esperando ingenuamente descobrir os sinais de um novo milagre cultural e espiritual. Se nossa pesquisa tivesse algum valor é o da desmitificação. A Itália do bem estar material vê seu espírito contraditório pelos italianos mesmos."

Nessa pesquisa antropológica, PPP vai à rua, ao espaço público, de alto a baixo na Itália, falando com velhos, crianças, crianças, anciões, religiosos, atletas, soldados, prostitutas sobre sexo, valores morais e sociedade. Usa uma câmera metralha, dispara à queima roupa, sofisticando ao longo do filme a forma de abordar, uma forma que pudesse extrair cada vez melhor a informação pretendida, ou melhor, que conseguisse expor da forma mais clara as contradições, dúvidas, inconsistências, preconceitos dos entrevistados. Naquela Itália, que acabava de entrar ruidosamente no movimento de expansão-consumo-tolerância, como Michel Foucault descreveria em seu artigo Les Matins Gris de la Tolérance, publicado no Le Monde, em 1977. Aula de documentário, uma antropologia feita de um ponto de vista totalmente sentimental, por alguém com uma opinião muito bem definida sobre o objeto investigado e que, ao contrário de escamoteá-la, faz antes questão de revelá-la.

 Comícios de Amor : Poster

As Manhãs Cinzentas da Tolerância
Michel Foucault*
“Les matins gris de lá tolérance”, Le Monde, n. 9.998, 23 de março de 1977, p. 24. (Sobre o filme de P. P. Pasolini, Comizi d’Amore, filmado em 1963 e apresentado na Itália em 1965.)
De onde vêm os bebês? Da cegonha, de uma flor, do Bom Deus, do tio da Calá- bria. Mas observem melhor o rosto desses guris: eles nada fazem para dar a impres- são de que acreditam no que dizem. Com sorrisos, silêncios, um tom longínquo, olhares que espreitam à direita e à esquerda, as respostas a essas perguntas de adul- to têm uma docilidade pérfida; elas afirmam o direito de guardar para si o que se gosta de cochichar. A cegonha é uma maneira de zombar dos grandes, de lhes pagar na mesma moeda; é o sinal irônico, impaciente de que a pergunta não irá mais lon- ge, de que os adultos são indiscretos, que não vão entrar na roda, e que o “resto”, a criança continuará a contar para si mesma.
Assim começa o filme de Pasolini.
Enquête sur la Sexualité é uma tradução bastante estranha para Comizi d’Amore: comícios, reunião ou talvez fórum de amor. É o jogo milenar do “banquete”, mas a céu aberto nas praias e nas pontes, nas esquinas das ruas, com crianças que jogam bola, meninos que perambulam, banhistas que se entediam, prostitutas em ban- do em uma avenida, ou operários depois do trabalho na fábrica. Muito distante do confessional, muito distante também de um inquérito em que, sob garantia de discrição, interrogam-se as coisas mais secretas, são as Propos de Rue sur l’Amour. Afinal, a rua é a forma mais espontânea da sociabilidade mediterrânea.
Para o grupo que perambula ou flana, Pasolini, como quem não quer nada, aponta seu microfone: faz indiretamente uma pergunta sobre o “amor”, sobre área imprecisa onde se cruzam o sexo, o casal, o prazer, a família, os noivados com seus costumes, a prostituição e suas tarifas. Alguém se decide, responde com certa hesi- tação, ganha confiança, fala pelos outros; eles se aproximam, aprovam ou resmun- gam, braços sobre os ombros, rosto contra rosto; os risos, a ternura, um pouco de calor circulam rapidamente entre esses corpos que se amontoam ou se roçam. E que falam deles próprios com tanta mais reserva e distância quanto seu contato é mais
intenso e caloroso: os adultos se agrupam e discursam, os jovens falam pouco e se abraçam. Pasolini entrevistador se apaga: Pasolini cineasta observa, todo ouvidos.
O documento é negligenciável quando se está mais inte- ressado pelas coisas que são ditas do que pelo mistério que não se diz. Após o reino tão longo do que se chama (muito apressadamente) de moral cristã, podia-se espe- rar, na Itália dos primeiros anos de 1960, alguma eferves- cência sexual. Absolutamente. Obstinadamente, as res- postas são dadas em termos de direito: a favor ou contra o divórcio, a favor ou contra a preeminência do marido, a favor ou contra a obrigação de virgindade para as moças, a favor ou contra a condenação dos homossexuais. Como se a sociedade italiana dessa época, entre os segredos da penitência e as prescrições da lei, não tivessem ainda en- contrado voz para essa confidencia pública do sexo que nossas mídias propagam atualmente.
“Eles não falam disso? É porque têm medo”, explica Musatti, psicanalista comum, que Pasolini interroga de tempos em tempos, assim como Moravia, sobre a inves- tigação que se estava fazendo. Mas Pasolini, evidente- mente, não crê em nada disso. O que atravessa todo filme não é, acredito, a obsessão do sexo, mas uma espécie de apreensão histórica, de hesitação premonitória e confusa diante de um novo regime que nascia então na Itália, o da tolerância. E é aí que as divisões se evidenciam, nessa multidão que concorda, no entanto, em falar do direito quando interroga sobre o amor. Divisões entre homens e mulheres, camponeses e citadinos, ricos e pobres? Sim, certamente, mas sobretudo entre os jovens e os outros. Estes temem um regime que vai subverter todos os do- lorosos e sutis ajustamentos que haviam assegurado o ecossistema do sexo (com a proibição do divórcio que atinge, de maneira desigual, o homem e a mulher; com o bordel, que serve de figura complementar da família; com o preço da virgindade e o custo do casamento). Os jovens
abordam essa mudança de forma bastante diferente; não com gritos de alegria, mas com uma mistura de gravidade e desconfiança, pois sabem que ela está ligada a transfor- mações econômicas que tendem a renovar as desigualda- des da idade, da riqueza e da posição social. No fundo, as manhãs cinzentas da tolerância não encantam ninguém, e ninguém ali pressente a celebração do sexo. Com re- signação ou furor, os velhos se inquietam: o que será do direito? E os “jovens”, com obstinação, respondem: o que será dos direitos, dos nossos direitos?
Esse filme, que já tem 15 anos, pode servir de ponto de referência. Um ano após Mamma Roma, Pasolini dá continuidade ao que vai se tornar, em seus filmes, a gran- de saga dos jovens. Desses jovens, nos quais ele absoluta- mente não via adolescentes para psicólogos, mas a forma atual de uma “juventude” que nossas sociedades, desde a Idade Média, desde Roma e a Grécia, jamais puderam integrar, que elas temeram ou rejeitaram, que jamais con- seguiram submeter, salvo matá-la de tempos em tempos na guerra.
Além disso, 1963 era a época em que a Itália acaba- va de entrar ruidosamente no movimento de expansão- -consumo-tolerância do qual Pasolini deveria fazer um balanço, 10 anos depois, nos Écrits corsaires. A violência do livro corresponde à inquietação do filme.
Mil novecentos e sessenta e três era também a época em que começava quase por todo lado na Europa e nos Estados Unidos esse novo questionamento das múltiplas formas do poder que os sábios nos dizem que “está na moda”. Pois bem!, que seja; a “moda” tende a ser usada ainda por algum tempo, como atualmente aqui em Bo- lonha.
*texto extraído da coleção Ditos e Escritos, coordenada pelo Prof. Manoel Barros da Motta, publicada pela FORENSE UNIVERSITÁRIA e cedido pela EDITORA FORENSE LTDA .

domingo, 2 de novembro de 2014

Poética e Retórica

Poética
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo narrador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbados
O lirismo dos clowns de Shakespeare
-Não quero mais beber do lirismo que não é libertação.
(Manuel Bandeira) 

Poética traduz meu estado de espírito (é certo que Brasília estimula). Retórica reflete impressão sobre o cenário político pós-eleitoral: o brasileiro tomado pelo debate; toda sua alienação exposta. Estridência de inconsistência: ai meu ouvido! Manuel Bandeira e Octavio Paz.

Retórica
Cantan los pájaros, cantan
sin saber lo que cantan:
todo su entendimiento es su garganta
(Octavio Paz)

sábado, 1 de novembro de 2014

Turn on, tune in, drop out





O nome do blog é lição dele. Em outro contexto, em um mundo menos complexo, ele já adiantara a proposta revolucionária: pensar diferente, revolucionar sua própria existência, insistir no possível. Nada mais atual e urgente.

Timothy Leary: "turn on, tune in, drop out"

O processo de individuação



"As pessoas vivem apenas em um ou dois andares de um grande edifício de apartamentos que é a nossa mente, esquecendo o resto", observou Jung. O processo de individuação nos põe em contato com o "resto". Nosso "eu" consciente não é a psique total. Existe um fundo inconsciente que opera subliminarmente, mesmo que não seja percebido. Ter acesso a esses elementos subjacentes e torná-los conscientes amplia e aprofunda nossa experiência de nós mesmos e da vida. O inconsciente pode ser guia, amigo e conselheiro do consciente. Ele fala conosco na linguagem dos símbolos, geralmente na forma de sonhos.



Interiorizar significa procurar os sinais e símbolos que o inconsciente sonha e deixa disponíveis natural e espontaneamente. Analisar, interpretar e sintetizar esses símbolos em nosso ser é tarefa de nosso self consciente. O mundo do inconsciente é essencialmente ambivalente, com aspectos negativos e positivos em todos os seus níveis o que dificulta a sua compreensão. Muitas vezes ele começa a se fazer sentir por meio de um estado negativo, como o tédio ou a estagnação na vida, ou de um golpe para o ego, uma lesão da personalidade.

Na primeira camada encontramos no inconsciente o que Jung chamou de sombra, geralmente partes de nós de que não gostamos, que não conhecemos ou não queremos conhecer. Para Jung "reconhecer a sombra é o que chamo de aprendizado. Mas decifrar a anima é uma obra-prima que poucos conseguem realizar.

O conceito de sincronicidade



Dr. Jung's concept of Synchronicity 

Ao longo de sua obra, Jung deu várias definições ao conceito de sincronicidade:

> “... coincidência, no tempo, de dois ou vários eventos, sem relação causal mas com o mesmo conteúdo significativo.” (CW VIII, par.849)
 
> “... a simultaneidade de um estado psíquico com um ou vários acontecimentos que aparecem como paralelos significativos de um estado subjetivo momentâneo e, em certas circunstâncias, também vice-versa.” (CW VIII, par. 850)
 
> “Um conteúdo inesperado, que está ligado direta ou indiretamente a um acontecimento objetivo exterior, coincide com um estado psíquico ordinário.” (CW VIII, par. 855)
 
> “...um só e o mesmo significado (transcendente) pode manifestar-se simultaneamente na psique humana e na ordem de um acontecimento externo e independente.” (CW VIII, par.905)
 
> “um caso especial de organização acausal geral.” (CW VIII, par.955)
 
> “coincidência significativa de dois ou mais acontecimentos, em que se trata de algo mais do que uma probabilidade de acasos.” (CW VIII, par. 959)

> “uma peculiar interdependência de eventos objetivos entre si, assim como os estados subjetivos (psíquicos) do observador ou observadores.” (I Ching, p.17)
 
> “o princípio da causalidade nos afirma que a conexão entre a causa e o efeito é uma conexão necessária. O princípio da sincronicidade nos afirma que os termos de uma coincidência significativa são ligados pela simultaneidade e pelo significado”. (CW VIII, par. 906)