quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Os deuses de Homero

Os deuses são muito mais do que uma fantasia homérica. Durante milênios, os gregos adoraram as divindades mencionadas nas epopeias e muito mais. Não há como ter alguma certeza do que fato tinham em mente ao fazê-lo. Mas, se tomarmos a Odisseia como guia, era algo assim: deuses são inquisitivos, intrometidos, orgulhosos de seus humanos favoritos e perigosamente suscetíveis de enraivecer. Para conservar seu favor, os mortais precisam oferecer sacrifícios, certificar-se de preencher as narinas celestes com o aroma da carne assada. O ritual de verter vinho, associado à oração, também funciona para aplacar os deuses. O herói luta para conquistar a única imortalidade acessível a humanos: a fama épica (kleos). Para tanto, precisava vencer obstáculos com ajuda divina ou ser espetacularmente derrotado, ao desprezá-la. Pode-se ver Odisseu envolvido numa questão religiosa, testando a eficácia de sua atitude em relação ao divino e determinando para si mesmo se os deuses vão lhe dar ouvidos e ajudá-lo.

O divino está em toda parte em Homero; sua poesia é profundamente teológica. Uma razão para a epopeia se deter tanto m banquetes e bebidas, por exemplo, é porque esses eventos são cruciais: na Grécia arcaica, cada refeição era também um ato religioso. Cada amanhecer é, com efeito, ora de uma deusa, Aurora. Lua e sol, rios, cavernas e árvores são deuses ou abrigam um habitante divino. Num nível emocional mais profundo, ouvimos ao longo de toda a Odisseia que os humanos descendem efetivamente de Zeus, de Ares ou de Posêidon. Odisseu, o heroi desse poema, tem uma ancestralidade interessante - seu avô materno, Autólico (cujo nome significa o "próprio lobo"), é um trickster e ladrão que, em algumas versões do mito, era filho de Hermes, deus conivente. A versão homérica abranda esse passado sombrio, defendendo em vez dela a história de que Hermes ensinou a Autólico a arte do roubo.

Isso levanta a questão da moralidade dos deuses homéricos. Não muito depois de as epopeias ganharem forma, os filósofos já começavam a criticar suas divindades. Disse um moralista do século VI, Xenófanes: "Homero atribui aos deuses tudo o que é mais vergonhoso entre mortais. Eles roubam, cometem adultério e enganam uns aos outros." No começo do século IV aC, Platão chegou ao ponto de banir a poesia de Homero da cidade idealozada, moralmente íntegra, que esboça em sua obra A república. A seu ver, a boa ordem do Estado era ameaçada não só quando os seus líderes liam a respeito e imitavam os personagens que Homero apresentava como incapazes de controlar suas emoções. Era um risco também que seus habitantes acreditassem em divindades menos que perfeitas.

Os deuses de Homero podem constituir paradigmas éticos pobres, mas mesmo assim encarnam verdades reais. São de fato poderes maiores que nós, em ação no mundo. Esses poderes parecem caprichosos e às vezes cruéis. Emoções assoladoras - desejo ardente, embriaguez, a ira da guerra -, de onde mais elas poderiam vir se não dos deuses? Chamar essas experiências respectivamente de Afrodite, Dionísio e Ares era dar-lhes nome, mas ao mesmo tempo controlá-las. Pois os deuses, uma vez humanizados , funcionam como uma família estendida e um tanto disfuncional, na qual existe ao menos alguma organização. Governando do alto está Zeus, que impõe suas ordens com raios brancos e ardentes. Hades e Posêidon, seus irmãos, têm seus lugares no mar e debaixo da terra. Outros deuses e deusas alinham-se como filhos ou filhas de Zeus. Há uma bela economia em tal sistema politeísta - um deus equilibra o outro, de um modo quase comicamente doméstico. Se a mão (Hera) diz não, você pode pedir para o pai (Zeus). Humanos conseguem o que pedem rezando a quantos deuses desejarem. 

Richard P. Martin, Apresentação de Odisseia.

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