quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Comícios de Amor

A retrospectiva completa da produção cinematográfica do italiano Pier Paolo Pasolini, com 22 títulos entre curtas e longas. “Pasolini, ou quando o cinema se faz poesia e política de seu tempo”

Acabo de assistir a "Comícios de amor" (Comizi d'amore), de 1963.


"Assim conclui-se a nossa pesquisa. O grito das classes sociais mais baixas e dos instintos mais profundos. Trabalhadores de Milão, Florença, Nápoles e Palermo unidos em uma luta contra uma lei moderna e democrática. Forçados a assim admitir a realidade de certos desejos que preferem ignorar. Se falam, é de modo excessivamente simplista e confuso. Nós a realizamos na Itália do milagre econômico, esperando ingenuamente descobrir os sinais de um novo milagre cultural e espiritual. Se nossa pesquisa tivesse algum valor é o da desmitificação. A Itália do bem estar material vê seu espírito contraditório pelos italianos mesmos."

Nessa pesquisa antropológica, PPP vai à rua, ao espaço público, de alto a baixo na Itália, falando com velhos, crianças, crianças, anciões, religiosos, atletas, soldados, prostitutas sobre sexo, valores morais e sociedade. Usa uma câmera metralha, dispara à queima roupa, sofisticando ao longo do filme a forma de abordar, uma forma que pudesse extrair cada vez melhor a informação pretendida, ou melhor, que conseguisse expor da forma mais clara as contradições, dúvidas, inconsistências, preconceitos dos entrevistados. Naquela Itália, que acabava de entrar ruidosamente no movimento de expansão-consumo-tolerância, como Michel Foucault descreveria em seu artigo Les Matins Gris de la Tolérance, publicado no Le Monde, em 1977. Aula de documentário, uma antropologia feita de um ponto de vista totalmente sentimental, por alguém com uma opinião muito bem definida sobre o objeto investigado e que, ao contrário de escamoteá-la, faz antes questão de revelá-la.

 Comícios de Amor : Poster

As Manhãs Cinzentas da Tolerância
Michel Foucault*
“Les matins gris de lá tolérance”, Le Monde, n. 9.998, 23 de março de 1977, p. 24. (Sobre o filme de P. P. Pasolini, Comizi d’Amore, filmado em 1963 e apresentado na Itália em 1965.)
De onde vêm os bebês? Da cegonha, de uma flor, do Bom Deus, do tio da Calá- bria. Mas observem melhor o rosto desses guris: eles nada fazem para dar a impres- são de que acreditam no que dizem. Com sorrisos, silêncios, um tom longínquo, olhares que espreitam à direita e à esquerda, as respostas a essas perguntas de adul- to têm uma docilidade pérfida; elas afirmam o direito de guardar para si o que se gosta de cochichar. A cegonha é uma maneira de zombar dos grandes, de lhes pagar na mesma moeda; é o sinal irônico, impaciente de que a pergunta não irá mais lon- ge, de que os adultos são indiscretos, que não vão entrar na roda, e que o “resto”, a criança continuará a contar para si mesma.
Assim começa o filme de Pasolini.
Enquête sur la Sexualité é uma tradução bastante estranha para Comizi d’Amore: comícios, reunião ou talvez fórum de amor. É o jogo milenar do “banquete”, mas a céu aberto nas praias e nas pontes, nas esquinas das ruas, com crianças que jogam bola, meninos que perambulam, banhistas que se entediam, prostitutas em ban- do em uma avenida, ou operários depois do trabalho na fábrica. Muito distante do confessional, muito distante também de um inquérito em que, sob garantia de discrição, interrogam-se as coisas mais secretas, são as Propos de Rue sur l’Amour. Afinal, a rua é a forma mais espontânea da sociabilidade mediterrânea.
Para o grupo que perambula ou flana, Pasolini, como quem não quer nada, aponta seu microfone: faz indiretamente uma pergunta sobre o “amor”, sobre área imprecisa onde se cruzam o sexo, o casal, o prazer, a família, os noivados com seus costumes, a prostituição e suas tarifas. Alguém se decide, responde com certa hesi- tação, ganha confiança, fala pelos outros; eles se aproximam, aprovam ou resmun- gam, braços sobre os ombros, rosto contra rosto; os risos, a ternura, um pouco de calor circulam rapidamente entre esses corpos que se amontoam ou se roçam. E que falam deles próprios com tanta mais reserva e distância quanto seu contato é mais
intenso e caloroso: os adultos se agrupam e discursam, os jovens falam pouco e se abraçam. Pasolini entrevistador se apaga: Pasolini cineasta observa, todo ouvidos.
O documento é negligenciável quando se está mais inte- ressado pelas coisas que são ditas do que pelo mistério que não se diz. Após o reino tão longo do que se chama (muito apressadamente) de moral cristã, podia-se espe- rar, na Itália dos primeiros anos de 1960, alguma eferves- cência sexual. Absolutamente. Obstinadamente, as res- postas são dadas em termos de direito: a favor ou contra o divórcio, a favor ou contra a preeminência do marido, a favor ou contra a obrigação de virgindade para as moças, a favor ou contra a condenação dos homossexuais. Como se a sociedade italiana dessa época, entre os segredos da penitência e as prescrições da lei, não tivessem ainda en- contrado voz para essa confidencia pública do sexo que nossas mídias propagam atualmente.
“Eles não falam disso? É porque têm medo”, explica Musatti, psicanalista comum, que Pasolini interroga de tempos em tempos, assim como Moravia, sobre a inves- tigação que se estava fazendo. Mas Pasolini, evidente- mente, não crê em nada disso. O que atravessa todo filme não é, acredito, a obsessão do sexo, mas uma espécie de apreensão histórica, de hesitação premonitória e confusa diante de um novo regime que nascia então na Itália, o da tolerância. E é aí que as divisões se evidenciam, nessa multidão que concorda, no entanto, em falar do direito quando interroga sobre o amor. Divisões entre homens e mulheres, camponeses e citadinos, ricos e pobres? Sim, certamente, mas sobretudo entre os jovens e os outros. Estes temem um regime que vai subverter todos os do- lorosos e sutis ajustamentos que haviam assegurado o ecossistema do sexo (com a proibição do divórcio que atinge, de maneira desigual, o homem e a mulher; com o bordel, que serve de figura complementar da família; com o preço da virgindade e o custo do casamento). Os jovens
abordam essa mudança de forma bastante diferente; não com gritos de alegria, mas com uma mistura de gravidade e desconfiança, pois sabem que ela está ligada a transfor- mações econômicas que tendem a renovar as desigualda- des da idade, da riqueza e da posição social. No fundo, as manhãs cinzentas da tolerância não encantam ninguém, e ninguém ali pressente a celebração do sexo. Com re- signação ou furor, os velhos se inquietam: o que será do direito? E os “jovens”, com obstinação, respondem: o que será dos direitos, dos nossos direitos?
Esse filme, que já tem 15 anos, pode servir de ponto de referência. Um ano após Mamma Roma, Pasolini dá continuidade ao que vai se tornar, em seus filmes, a gran- de saga dos jovens. Desses jovens, nos quais ele absoluta- mente não via adolescentes para psicólogos, mas a forma atual de uma “juventude” que nossas sociedades, desde a Idade Média, desde Roma e a Grécia, jamais puderam integrar, que elas temeram ou rejeitaram, que jamais con- seguiram submeter, salvo matá-la de tempos em tempos na guerra.
Além disso, 1963 era a época em que a Itália acaba- va de entrar ruidosamente no movimento de expansão- -consumo-tolerância do qual Pasolini deveria fazer um balanço, 10 anos depois, nos Écrits corsaires. A violência do livro corresponde à inquietação do filme.
Mil novecentos e sessenta e três era também a época em que começava quase por todo lado na Europa e nos Estados Unidos esse novo questionamento das múltiplas formas do poder que os sábios nos dizem que “está na moda”. Pois bem!, que seja; a “moda” tende a ser usada ainda por algum tempo, como atualmente aqui em Bo- lonha.
*texto extraído da coleção Ditos e Escritos, coordenada pelo Prof. Manoel Barros da Motta, publicada pela FORENSE UNIVERSITÁRIA e cedido pela EDITORA FORENSE LTDA .

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